AGORA VC ME OU VE (Projeto de Bandeira)
Hoje um post um pouco diferente: meu projeto (não escolhido rs 🥲) para o edital de 2023 para a nova bandeira do Museu de Arte do Rio, do qual gosto e compartilho aqui:
Esta bandeira é um manifesto de raiva que dedico às minhas colegas invisíveis e inauditas. Seu propósito é explorar a frustração de nunca encontrar voz ou agência, embora se esperneie e berre até enfim perder a voz, e então a paciência. Vc me ouve? Ou vê? E agora?
Este incômodo vem refletido primeiramente no contraste entre as cores empregadas. Dois pares de complementares: vermelho contra verde, azul contra laranja. Tais embates se chocam contra nossos olhos, reverberando por trás das pálpebras. Parece necessário esfregá-las, ficar vesga e piscar muito. Se olhamos demasiado para a imagem, fica gravada na retina uma impressão – de perigo, há duas fileiras de dentes à mostra e letras garrafais expressando um grito. Impossível que não o fizessem, com cores berrantes assim, cores como banhsees, prenunciando a morte. Cores histriônicas, como Augustine para Charcot, revirada num leito hospitalar, manejada, explosiva em seu êxtase divino, pois no contraditório e espetacular jogo da histeria oitocentista, finalmente encontrou uma voz: AGORA VC ME OU VE!
Esta coisa física, esse desejo de virar do avesso, de explodir de raiva, vem expressa também nas mãos que maltratam um mamão. Atenção, estamos para presenciar algo, eis o prenúncio. Carpideiras a postos para verter o gozo de seu choro expiatório. O mamão é quem expiará os nossos pecados, e o espetáculo de seu sacrifício delimita nosso escopo.
Não é de hoje minha identificação com objetos inanimados, em particular com frutas e legumes. Inerte como eles, à espera do que o destino me reserva. Silenciosamente madurando, até passar do ponto ou ser consumida. A mulher sempre foi associada com a fruta. Não só por nossa infalível papaia, em sua semelhança uterina, dir-se-ia histérica, mas a mulher é inteira corpo, e corpo de fruta. Suntuosa, melada, fértil, pronta para se chupar, mordiscar, desfrutar, ou então rebentar em mil rebentos. Ou então, quando acre, por que não cozinhar a mulher, trazendo à tona sua doçura? Asse-a na grelha, e então a mutile, quero dizer fatie contra o sentido da fibra, seu sangue vermelho incontido pelas canaletas da tábua, da menarca em diante, galões de sangue desperdiçados, então coma o sexo dessa mulher, coma sua mente, coma sua alma. Tantas mulheres desperdiçadas, que raiva. Ah, então agora vc me ouve. Ou vê. Mas, a mim? Justo a mim? O que fazer com sua atenção, agora que a tenho?
A bandeira se enrola na mensagem, suplantada por seu afeto: as cores prejudicam a leitura dos elementos, sua organização é claustrofóbica. O choro é espetacular demais, a raiva é espetacular demais, mas o espetáculo não é real, o mamão não corre risco verdadeiro. É uma farsa, evidentemente, uma brincadeira: uma imagem não possui som, jamais será possível ouvir seu grito. Contudo, o grito não deve articular-se, sendo antes a antítese da ordem – mesmo em se gritando palavras de ordem. Palavras desordem. O grito deve ser justamente o agente e a voz da raiva em si, o júbilo da cegueira, o baque surdo de um basta. O importante é afetar-se. O importante é que agora vc me ouve. Ou vê.
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