• Diário® – 13/04/24

    (revisado e publicado em 10/05/24)

    Após ler o lindíssimo e inédito texto que o Roger escreveu relatando eventos que compartilhamos, ao me ver por seus olhos, mas principalmente ao viver essas experiências a partir de sua experiência, como uma metamorfa, penso nas coisas que eu disse e que agora saem de sua boca, de seus dedos, e lhe pertencem. Por um segundo sinto, após uma admiração locomotiva, o familiar medo de me dissolver em sua identidade, de perder a minha própria, frágil. Passado esse segundo, sou tomada pela lembrança feliz de que sou eu também concretamente reconstruída por suas ideias, sua mitologia, suas piadas, sua história, até que sejam parte da minha carne, como sua carne tornou-se.

    Graças a deus que nos contaminamos um do outro diariamente. Durante a pandemia o contágio era nosso maior desespero, a palavra ainda hoje provocando uma torção na língua, nós dois mais neuróticos que a média (eu acho). Não saíamos de casa, não encontrávamos ninguém, ressentimos aqueles que deram desculpas para fazê-lo. Esquecemos por vezes do fato de sermos os dois entocados por natureza, e também da facilidade, ou melhor, da necessidade que temos da proximidade física um do outro, para reiterar essa fortitude de resolução.

    Eu reclamo essas palavras, contágio e contaminação, desde algum tempo. Na pintura é o que busco: as coisas se contaminando umas das outras, refletindo mutuamente seus tons, a alteridade estampada de forma feliz. Nós sendo nós mesmos somente no espelho da pele das coisas que nos rodeiam, e vice e versa. Coisas que se tocam numa pintura só o fazem quando a oclusão da luz em seu ponto de contato é devidamente representada, o que ocorre através do casamento de tons e cores predestinados. De outra forma, poderiam amalgamar-se numa coisa só. Quando duas cores se contagiam demais, por outro lado, se tornam lamacentas e perdem seu viço, caminhando sempre em direção ao cinza acastanhado quaternário. É preciso contaminar-se, mas com atenção redobrada aos limites de um e do outro.

    Voltei a tomar antidepressivos depois de dez anos. Uma opção que sempre me assombrava e que, evitada, dobrava os sinos da vitória em meio às diversas desventuras desse período passado. Tendo me dissolvido e contaminado demais dos traumas dos últimos anos, culminando num quadro de ansiedade e sintomas físicos intermitentes (insônia, choros, bruxismo, taquicardia, dor no peito, sudorese, dor de cabeça, confusão mental, azia, dores de estômago, prisão de ventre, diarréia, melancolia, ideias fixas e letargia, e acho que só), consultei uma psiquiatra. Digo que voltei aos remédios, mas não é bem um retorno, como fui lembrada e relembrada: não fui só eu que mudei desde minha última experiência válida, mas um pouco traumática, com os psicotrópicos, como também eles têm outra cara e composição. Já posso sentir, com enorme alívio, seus efeitos. Um deles sendo a derrocada da tirania centrípeta da mente, possibilitando por exemplo dissolver-me no Roger de formas concretas e felizes, palpáveis e palatáveis. Como é bom sorver seu gosto em paz, sem questionar a concretude da realidade e a validação do bilhete do prazer enquanto se revive trinta e cinco experiências caducas e pensa-se na janta em simultâneo. Também reparo numa culpa que se ausenta, minha fiel companheira e carrasca, em processos de solitude tranquila.

    Eu estou contaminada do Roger nesse exato momento, tendo me inspirado por seu texto para botar este no papel, com enorme urgência. Também sei que ele foi contaminado pelo livro da Annie Ernaux, que lhe recomendei a leitura, tendo o tema da memória e autobiografia como eixo central. Eu agradeço por minha influência nele, e também em amigas e amigos, em familiares, em todos que já conheci, e em especial pelas deles em mim – como sempre, prazerosas ou não. O que é nosso parcamente nos pertence, somos meros empréstimos. E graças a deus.

    Sempre sua,
    Popinhas

  • Diário® – 16/12/23

    Sem Título/
    original disponível, fale comigo para saber mais

    Parte I – 11/12/23

    Nosso telhado, mal feito, que deu problemas desde o primeiro dia, se enrolou que nem uma lata de sardinhas com a tempestade violenta de ontem, derrubando uma cachoeira sem precedentes pelo conduíte da sala. Enquanto corríamos para esvaziar balde atrás de balde, não pude evitar de traçar um paralelo com a futilidade de tentar esvaziar um barco furado, que afunda. Só conseguia dizer meu deus, meu deus, meu deus em meio às lágrimas, que se somavam às da casa. Ainda assim, não foi em vão o esforço, conseguimos lidar com a crise e depois da chuva, intensa mas breve, abriu um lindo pôr do sol com uma revoada de andorinhas. Agora esperamos um novo serralheiro para o próximo capítulo dessa cobertura.
    Entro em uns espirais quando me sinto desprotegida no meu abrigo, mas o Rogê me lembrou que nunca existe isso de segurança de verdade. A vida está sempre aí, dentro e fora de casa, com bruta transparência.
    Me sinto renovadamente grata pela vida que tenho, pelos afetos, pelos apoios, pelas alegrias, pelas ambiguidades e pelas angústias, porque estou viva e estou aqui.

    Parte II – 16/12/23

    O telhado novo, ou ao menos renovado, está quase pronto. Os calheiros vieram na segunda-feira para ver o estrago e preparar o orçamento. Descobrimos que o telhado anterior estava meramente apoiado sobre seus pezinhos metálicos, além de aparafusado em alguns pontos nos blocos (de oito furos, ocos) que compõem nossa casa. Pareceu um milagre que ele não tenha saído voando antes.

    Na quarta-feira os calheiros, dois filhos e seu pai (três homens muito simpáticos e, ao que tudo indica, competentes), estavam de volta para iniciar o serviço, que vai, com perdão do trocadilho, de vento em popa.

    Quando as telhas se enrolaram, pedi às forças maiores que nos concedessem um período sem chuva para que pudéssemos evitar de viver em um aquário, mas que também não era preciso exagerar, parar de chover para todo o sempre (rs). Só até terminar o serviço. Ontem, assim que os três partiram e que a laje estava toda coberta, começou uma chuva densa, de pouco vento. Me senti tomada pela efervescência de um segredo místico e me pus à disposição do tempo da chuva (estou no aguardo de um sinal, que espero poder cumprir).

    Dá medo dizer isso, mas acho que agora estamos confiantes com nossa cobertura – ontem o Roger disse se sentir à vontade dentro de casa na chuva pela primeira vez. No dia da crise, eu me lamuriava a meu pai e madrasta que era tudo culpa minha e do Roger, por termos tomado todas as decisões erradas na construção da casa, que não sabíamos o que estávamos fazendo e agora vivíamos o resultado. Eles me tranquilizaram com uma gargalhada não jocosa, de jeito nenhum, toda casa é assim, vamos arrumando as coisas aos poucos, vocês têm uma casa que fizeram, isso é muito bom. Muitas amigas e pessoas próximas também nos recitaram suas histórias de telhados ruindo, água correndo pelas paredes, móveis flutuantes, telhas aladas – o que me fez achar meu desespero um pouco ridículo, o que de fato foi. E por isso também nos tranquilizaram. E eu não me arrependo de nada, como diz o Brel.

    Agora há só alguns ajustes finais a fazer lá em cima, para além da porta da sala que, com alguma sorte, será possível consertar também – um outro perhaps, como se diz aqui na região!

    Sempre sua,
    Popinhas

  • Diário® – 12/10/23

    Pânico Tônico Clônico 2/
    original indisponível, pois já pertence a alguém

    (Este texto e o da semana passada foram feitos para processar algumas coisas, mas por leve incentivo da Priscila, resolvi compartilhar aqui. Observação: pode ser gatilhoso, fala sobre distúrbios de pânico e ansiedade.)

    Tive um ataque de pânico durante a terapia desta semana, e me atingiu o curioso da visão espetacular que representa, sempre para os olhos dos outros – um ataque de origens histéricas? Rebatidas sempre no outro, implorando por ser limitada e extravasada ao mesmo tempo, deixar-se ir e deixar seu corpo para trás?

    Explico-me: quando tenho esse ataque, não consigo me ver, estou dentro da prisão idiota e hiperalerta da minha cabeça-centrífuga. Costumo ter esse ataque quando estou com outra pessoa. Talvez porque para ela: socorro, me veja, me contenha; mas também porque, penso agora, não consigo conciliar um paradoxo interior, e muito menos conciliar seu aspecto interno com o escaldante externalizado da fala. Uma vergonha se entala entre a garganta e o coração, gerando algum engarrafamento no funcionamento harmônico do meu organismo.

    O pânico tem este desenho:

    Um predador está à espreita, a um só tempo dentro e fora de mim. Ele carrega em seu corpo a prova cabal de que posso* continuar viva, e por isso vem me matar e coletar minha alma, que lhe pertence. A evidência é a vergonha – de saber que vivo em tempo roubado, com recursos impróprios, com alegrias que não mereço. Nada é meu e nem pode sê-lo. Preciso fugir com esse tesouro para sempre, se quero continuar viva, o que quero, mas sei que essa vida não deveria ser minha. Dívida impagável.

    Ele solta uma bomba na minha praça central, o pandemônio segue, uma guerra, o chão se abre e me engole. Meu corpo se estira e chacoalha inteiro com o impacto interno, preciso crescer, inflar como um balão para dar vazão à energia destrutiva que se liberta. Ao mesmo tempo, preciso me encolher inteira para proteger-me do que está do lado de fora – posição fetal, auto-abraço, sentir meu cheiro, tampar os olhos e os ouvidos, deixar de existir, voltar ao início de tudo; mas também fazer como o porco espinho ou o tatu-bola e se tornar uma armadura inviolável em espiral, como a tartaruga ou o caracol e voltar-se para dentro de seu corpo, que é uma fortaleza.

    A incongruência é a energia no núcleo dessa bomba, que a perpetua; a pura impossibilidade, duas coisas que não cabem juntas, que se odeiam mutuamente, para sempre em guerra. O paradoxo não pode acontecer aqui, porque divino, porque perfeito. E no entanto, ele apenas é, o que alimenta mais ainda o fogo.

    Ao ter o ataque durante a sessão, dentro da qual já abordei muitas vezes essas crises, mas as tive muito poucas, precisei soltar o celular para não segurar a descarga elétrica que segue, regida por ondas de choro e raiva intensos. Dessa vez senti um alívio muito grande de chorar algo que precisava ser chorado, apesar da vergonha maior que se seguiu.

    É basicamente uma pirraça, igual às que tinha quando criança, possuindo grotescamente meu corpo de mulher adulta, seios caindo, rugas no rosto, cabelos brancos, perdendo tônus, paciência, fé.

    Sinto o desejo de que a Priscila veja meu ataque de pânico para normatizá-lo enquanto profissional, mas ela não o poderá ver, pois não apareço no frame. Eu acho. Não estou com os olhos abertos para fora.

    Algo agora me alertou no fundo da mente, um apito e uma luz vermelha que se acende. Acabo de me recordar dessa noite de sono, na qual dormi profundamente pela primeira vez em semanas, mas da qual acordei com um gosto amargo pelos caminhos percorridos no sonho e com dor de cabeça por apertar muito os dentes.

    No sonho, a Priscila me denunciava, o dedo apontado feito pistola e as palavras incisivas feito bisturi**: a forma como suplico por sua aprovação e comprovação de que o que vivo é legítimo para não precisar jamais viver de fato, para viver na segurança da articulação controlada ao invés da experiência empírica e crua. Ela deixará de me atender por conta disso.

    Selvagem. Colonizada. Ordem. Caos. Amor. Medo.

    * No original eu cometi este ato falho: “posso”, ao invés de “não posso”. Achei representativo de um desejo de sobrevivência maior, e que valia por isso manter assim aqui

    ** (Coisa que jamais fez)

  • Diário® – 28/09/23

    Pânico Tônico Clônico 1/

    Original indisponível (pois já pertence a alguém)

    Algo de insólito derramou-se sobre os dias de hoje e de ontem.

    Tive uma sessão de terapia radical, concluída com meu corpo estirado na cama, os olhos querendo se fechar num cansaço atávico, melado. Em seguida passei pelas questões novamente com o Roger e fomos ainda um pouco além – a fragilidade desse meu feminino-vítima patologizado, como é impossível dissociar-me totalmente dele tendo não só um corpo definido como de mulher desde sempre, mas também identificando-me com ele, tomando suas dores e rédeas na busca constante da redenção dessa minha parcela ambígua e radical – a eterna feminina. Vejo-me de volta à turbulência da pesquisa do mestrado. Portas fechadas. Armadilhas.

    É preciso estar atenta o tempo inteiro, alerta na luta pela sobrevivência, esperta para não perder por completo o acesso à calma, ou à fé. Como? Respirando? É preciso encarnar esse paradoxo o tempo inteiro, ser sempre algo e seu oposto. Isso é uma loucura. Isso cansa.

    Ao final de um dia exausto, caiu a energia elétrica, o que me pareceu sincrônico e punitivo – eu o temia, com esse calor extremo. Temia tanto ficar sem, quanto o ser culpa minha pelo excesso do uso. Todavia, aconteceu.

    Ficar do lado de fora da casa no dia mais quente desde quando, sempre? Últimos anos? O que já vivi, certamente. Tomar uma brisa, ver a lua. Dormitar na cadeira de área, ser picada. Roger estava fazendo pão, encerrou o processo no meio.

    Começou uma tempestade, muito vento, alguns pingos de chuva, ao longe um incêndio gigantesco (criminso, muito provavelmente, ou fruto de um relâmpago aliado à seca). Um rápido desespero pela Grumixama não estar em casa, ela fica apavorada nessas situações. Rezei o mantra da minha avó – oyashikiri, oyashikiri -, ela se materializou ofegante na dispensa (a gata, não minha avó). Agradeci.

    Muito medo. Medo do aquecimento global, do fim dos tempos, de não termos mais tempo. Uma estranha certeza de que a luz não voltará até amanhã, quiçá nunca mais, que passaremos a noite em absoluto desconforto. Mas instalei novamente o tule na janela do quarto, que pernoitou aberta pela primeira vez em dois anos (após a mesma gata destruí-lo, em seguida a essa única noite de uso).

    Sinto que precisei viver isso, um pífio rito de passagem, nada demais, mas tingido de tom calamitoso.

    Hoje a luz voltou às 10 da manhã, confirmando minha primeira teoria, desbancando a segunda e me inundando com um otimismo descabido e com a necessidade de dançar com o vento, conduzindo-o de um lado a outro da varanda. Parecia estar possuída por outra força – não física, pois estirei um músculo da perna ao carregar uma cadeira e pisar em falso calçando um tamanco, e ademais sou meio desengonçada em meus passos de dança mais ousados (como esse pas-de-deux com a cadeira – ou melhor, faux pas). Tentei todavia equilibrar-me e soprar junto a essa ventania.

    Hoje então ventou muito, o dia inteiro, inspirando a leitura intermitente, mas até ao final, de Escute as Feras, da Nastassja Martin – cortada por sonecas na varanda, golpes de vento na cara, alerta, pegar roupas no varal, assistir a qualquer coisa na tevê com o Rogê. Algo em mim segue eriçado, guiado por essa selvageria antes literal do que simbólica, mas incontestável, incontornável. “Vi o mundo demasiado alter do bicho; o mundo demasiado humano dos hospitais. Perdi meu lugar, procuro um entremeio. Um lugar onde me reconstituir”. De novo penso no mestrado, no Arlindo, que me disse, após presenciar um ataque de pânico que não consegui esconder, quase que exatamente isso, quase que nas mesmas palavras (como mencionado aqui, no texto “Envelhecer”).

    Hoje não liguei o ar nem o vento o dia inteiro, nem o computador (só o celular. Só acompanhei o Roger no escritório. Só o acompanhei vendo tevê. Truques). A janela do quarto segue aberta, assim como a cortina, o sol atinge meu corpo e não me fustiga, como esperava. Não sei se por conta da fumaça do incêndio, que o filtra, mas creio que sim, pois ele então pôs-se vermelho. O vento me refresca e põe de cabelos em pé, chacoalhando a casa inteira.

    Não consigo decifrar os acontecimentos, seus significados, sintomas. Estou em um estado de torpor alerta, como que mesmerizada. Agora escrevo.

    Sempre sua,
    Popinhas

  • Jorrando

    Sem Título (abóbora chorando)/
    original disponível, fale comigo para saber mais

    Estou no começo, beeem no começo, de uma pesquisa sobre os desdobramentos imagéticos e imaginários do choro. Para onde nos conduzem os trilhos das lágrimas?

    JORRANDO

    Uma vida de olhos voltados para o chão/ Eu uso os olhos para ver e chorar.

    Para quê se chora, e para quem? Para si, para os outros? O choro é um ato catártico, extático, patético e piedoso – ou seja, carregado de pathos e paixão.

    Chora-se de raiva, de dor e de júbilo, e também de mentira – lágrimas de crocodilo. Impossível desvencilhar-se totalmente de seu lado ridículo e performativo, por mais sincero o choro. Você está fingindo? Engole esse choro! Etc.

    De que é composta a lágrima? De que é composto o choro? De que é composta a manha?

    Insetos choram? – No Google: Quais insetos têm sentimentos? Quais insetos sentem dor? O que os insetos sentem? Como os insetos dormem?

    Gotejar: plantas e frutos, o orvalho, a seiva. As nuvens chovem. Nascentes brotam. E os animais de grande e médio porte? (Carneiros choram ao morrer?) E os domésticos? (Minha gata lacrimeja, por sequela da rinotraqueíte.) Soro, terapia intravenosa.

    Chorar de cansaço. Derramar-se como uma calda, deixar-se ir, jorrar.

    Carpideiras jorram profissionalmente, expiando a dor coletiva do luto através do gozo inegavelmente presente de seu choro: a evidência da ausência de alguém que partiu. Chorar carpindo um lote, abrir uma cova. Abrir um berço, encher com paú, palha, terra, árvore. Quem tem tempo de chorar no roçado, calçando botinas?

    O choro nas novelas, no audiovisual, na cultura popular, na canção – De Leandro a Mozart, via Leonardo. De longe não se chora, só de perto.

    “Para ver bem são-nos necessárias – paradoxo da experiência – todas as nossas lágrimas”, diz Georges Didi-Huberman. Nós vivemos um luto coletivo. É preciso chorar.

    Sempre sua,
    Popinhas

  • AGORA VC ME OU VE

    AGORA VC ME OU VE (Projeto de Bandeira)

    Hoje um post um pouco diferente: meu projeto (não escolhido rs 🥲) para o edital de 2023 para a nova bandeira do Museu de Arte do Rio, do qual gosto e compartilho aqui:


    Esta bandeira é um manifesto de raiva que dedico às minhas colegas invisíveis e inauditas. Seu propósito é explorar a frustração de nunca encontrar voz ou agência, embora se esperneie e berre até enfim perder a voz, e então a paciência. Vc me ouve? Ou vê? E agora?

    Este incômodo vem refletido primeiramente no contraste entre as cores empregadas. Dois pares de complementares: vermelho contra verde, azul contra laranja. Tais embates se chocam contra nossos olhos, reverberando por trás das pálpebras. Parece necessário esfregá-las, ficar vesga e piscar muito. Se olhamos demasiado para a imagem, fica gravada na retina uma impressão – de perigo, há duas fileiras de dentes à mostra e letras garrafais expressando um grito. Impossível que não o fizessem, com cores berrantes assim, cores como banhsees, prenunciando a morte. Cores histriônicas, como Augustine para Charcot, revirada num leito hospitalar, manejada, explosiva em seu êxtase divino, pois no contraditório e espetacular jogo da histeria oitocentista, finalmente encontrou uma voz: AGORA VC ME OU VE!

    Esta coisa física, esse desejo de virar do avesso, de explodir de raiva, vem expressa também nas mãos que maltratam um mamão. Atenção, estamos para presenciar algo, eis o prenúncio. Carpideiras a postos para verter o gozo de seu choro expiatório. O mamão é quem expiará os nossos pecados, e o espetáculo de seu sacrifício delimita nosso escopo.

    Não é de hoje minha identificação com objetos inanimados, em particular com frutas e legumes. Inerte como eles, à espera do que o destino me reserva. Silenciosamente madurando, até passar do ponto ou ser consumida. A mulher sempre foi associada com a fruta. Não só por nossa infalível papaia, em sua semelhança uterina, dir-se-ia histérica, mas a mulher é inteira corpo, e corpo de fruta. Suntuosa, melada, fértil, pronta para se chupar, mordiscar, desfrutar, ou então rebentar em mil rebentos. Ou então, quando acre, por que não cozinhar a mulher, trazendo à tona sua doçura? Asse-a na grelha, e então a mutile, quero dizer fatie contra o sentido da fibra, seu sangue vermelho incontido pelas canaletas da tábua, da menarca em diante, galões de sangue desperdiçados, então coma o sexo dessa mulher, coma sua mente, coma sua alma. Tantas mulheres desperdiçadas, que raiva. Ah, então agora vc me ouve. Ou vê. Mas, a mim? Justo a mim? O que fazer com sua atenção, agora que a tenho?

    A bandeira se enrola na mensagem, suplantada por seu afeto: as cores prejudicam a leitura dos elementos, sua organização é claustrofóbica. O choro é espetacular demais, a raiva é espetacular demais, mas o espetáculo não é real, o mamão não corre risco verdadeiro. É uma farsa, evidentemente, uma brincadeira: uma imagem não possui som, jamais será possível ouvir seu grito. Contudo, o grito não deve articular-se, sendo antes a antítese da ordem – mesmo em se gritando palavras de ordem. Palavras desordem. O grito deve ser justamente o agente e a voz da raiva em si, o júbilo da cegueira, o baque surdo de um basta. O importante é afetar-se. O importante é que agora vc me ouve. Ou vê.

  • Shame Poem I & II

    Sem Título/

    Original indisponível (pois já pertence a alguém)

    Shame Poem I

    (29/09/2020)

    No matter where I go

    The shame follows

    Like the tail of a rat,

    Naked

    And dragging along.

    Or that of a skunk,

    On better days,

    Rising above my head.

    Which leaves me not much

    To do

    But to seek forgiveness

    From improvised confessors

    And jurors.

    Or rather,

    On better days, to

    Flaunt it like a trophy

    Earned for getting by,

    Proud

    And ashamed.


    Shame Poem II

    (25/01/23)

    eu gosto da palavra inglesa Shame,

    este matrimônio da culpa com a vergonha,

    porque se comporta da mesma forma que

    as mãos que se unem, em concha,

    e se erguem, em súplica,

    para cobrir quase por inteiro

    o rosto da pessoa que pecou.

    Com as mãos comungadas,

    cobre os olhos, para não ser vista,

    a boca, para não ser ouvida,

    e os dutos de ar, para desocupar espaço.

    Fazer das mãos um sudário e

    mortificar-se de vergonha.

  • Diário – Envelhecer

    Covid/
    original disponível, fale comigo para saber mais

    (10/12/22)

    Desde que cheguei de viagem que,

    ao passar as mãos pelo rosto enquanto

    pratico minha rotina de cuidados matinais,

    percebo uma falta de elasticidade, uma aspereza e porosidade maior

    na trama dos dias.

    Creio que estou envelhecendo.

    (08 a 16/12/22)

    Tenho por costume anteceder minhas crises com “me sinto”. Talvez o faça para atenuar a infalibilidade de uma sentença seguida pelos tenebrosos estou, ou pior, sou – me sinto uma inútil, me sinto feia, me sinto velha, sinto que não sei quem eu sou, que eu devia fazer muito mais. Me sinto em eterna dívida.

    Talvez seja por outro hábito adquirido, o de ponderar a impermanência de todas as coisas, mesmo dos tenebrosos estois e sois, por piores ou melhores que sejam. O vaivém hipnótico do pêndulo de um relógio de pé. Ou de um ilusionista de pé, com uma mulher histérica e deitada num divã. Me sinto em eterna dúvida.

    São Paulo. Mais ou menos sem exceção, quando vou e volto de lá, passo por um período de dissociação. Parte psíquica e parte literal, pela condição sine qua non de viajar – a de separar-me dessa linda terra que venho chamando de lar. Há sempre o deleite de reunir-me com as minhas pessoas e viver suas aventuras. Porém, muitas das histórias que escolhi deixar para trás em troca de ser alguém capaz de existir no mundo parecem se converter em sua forma vaporosa e me subir pelo nariz junto com a feia fumaça, inflamando-me o juízo. Atualmente, me deparo com dois problemas dentro dessas escolhas.

    Em primeiro lugar, ao distanciar-me temporal e geograficamente de meu passado, aprendi que a maioria das coisas relegadas ao expatriar-me são, infortunadamente, parte integral de meu corpo. São, é claro, o que mais me perturba mas, mais claro ainda, de onde tiro força. O que me confunde é ser sequestrada pelos fantasmas, perder agência, esquecer-me de quem sou (essa frágil e meticulosa construção, que anda precisando passar mais pelo hábito citado dois parágrafos acima).

    Isso me leva ao segundo ponto, que trata-se de um embate com meu dever maior, que rogo para tornar-se meu devir, que é com a verdade. Como posso buscar ser de verdade, ser verdadeira e verdadeiramente ser, se escolho deixar para trás partes minhas em detrimento de outras mais nobres, ou talvez mais funcionais?

    Por outro lado, tendo desde muito cedo vivido com depressões, ansiedades, culpas e pânicos titânicos, torna-se evidente como certos comportamentos, eventos ou fatos não pertencem mais ao presente, e uma vez vividos, é preciso abandonar a bagagem para que ela se transforme em memória.

    Ainda me sinto, constantemente mas não sempre, um ser humano quebrado. O amigo e mestre Arlindo disse-me, quando cheguei em Portugal: a Mariana está fragmentada e em busca de reconstituir-se. Percebo agora, aos 35 anos, contornos surgindo neste quebra-cabeça, enquanto outras peças que foram enfiadas de qualquer jeito precisam ser desmontadas e reconsideradas perante o todo. Às vezes essa desordem tem lá o seu lugar, mas não o ignoro poder carregado pela alegria pura do encaixe perfeito.

    Da Paraíba, só posso dizer que o futuro se torna passado rápido demais, tendo passado hoje pelo nosso cronograma de compromissos anteriores à viagem, e que já estou com saudades dos passeios com Diego e Meirinha, dos cocos doces a dois e cinquenta, do vento fresco e mar sereno, das lindas vistas, de conseguir descansar pela primeira vez em quatro anos. E o ponto essencial dessa crise parece-me vir aqui: devo lembrar que o passado sempre vem a ser de maneira insopitável, engolindo e reincidindo no presente, sobreposto pela memória em suas voltinhas e revoltas. Mas é algo concreto, apesar de sensacionalmente plástico, e só poderemos inventar dele de colher quaisquer futuros.

    Sempre sua,
    Popinhas

  • Paraíba

    Bessa 20/11/2022/
    original indisponível (porque faz parte do meu caderno)

    Paraíba, Paraíso!
    Estamos passando uma curta temporada em João Pessoa com um bom amigo, que preciosidade.

    Fora isso, uma poesia do dia 14:

    Pazes (14/11/22)

    Eu, que ando há algum tempo em busca de pazes –

    de fazê-las, ou das que está-se em,

    percebi na noite passada, em uma visão,

    seu turbilhão violento.

    Um terremoto é paz, guerra é paz,

    tudo o que perturba o sistema é paz,

    pois está previsto e comportado, em sua rebeldia, pela vida.

    Que estranho.

    O concreto que não o é, o constrito que não o é, e também o tirânico,

    e também e hegemônico,

    que não se sustenta.

    A vida em movimento é que é paz, respirando

    e morrendo,

    descansando em paz.

    Ontem eu vi o formato da paz – duas hastes brancas entrelaçadas e rotacionando. Cheguei a sentir seu cheiro,

    mas desse agora já não lembro e posso apenas inventar

    que lembrasse o cheiro da goiaba,

    como tantas coisas lembram aqui na divisa do cerrado

    com a mata atlântica.

  • Liberdade

    E vou sendo como posso/
    original disponível, fale comigo para saber mais

    Para-Quedas (3/5/21)

    Dar as mãos e

    um passo no espaço.

    Em queda livre,

    largar os pontos finais

    por pássaros e poréns.

    Atravessados,

    perdemos tudo

    para quedarmo-nos

    livres

    Poder (26/7/22)

    Liberdade é poder

    escolher

    conhecer

    de verdade

    P.S: Desde ontem que deve estar Rolando no céu uma festa bem leGal ❤

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