Diário® – 28/09/23

Pânico Tônico Clônico 1/

Original indisponível (pois já pertence a alguém)

Algo de insólito derramou-se sobre os dias de hoje e de ontem.

Tive uma sessão de terapia radical, concluída com meu corpo estirado na cama, os olhos querendo se fechar num cansaço atávico, melado. Em seguida passei pelas questões novamente com o Roger e fomos ainda um pouco além – a fragilidade desse meu feminino-vítima patologizado, como é impossível dissociar-me totalmente dele tendo não só um corpo definido como de mulher desde sempre, mas também identificando-me com ele, tomando suas dores e rédeas na busca constante da redenção dessa minha parcela ambígua e radical – a eterna feminina. Vejo-me de volta à turbulência da pesquisa do mestrado. Portas fechadas. Armadilhas.

É preciso estar atenta o tempo inteiro, alerta na luta pela sobrevivência, esperta para não perder por completo o acesso à calma, ou à fé. Como? Respirando? É preciso encarnar esse paradoxo o tempo inteiro, ser sempre algo e seu oposto. Isso é uma loucura. Isso cansa.

Ao final de um dia exausto, caiu a energia elétrica, o que me pareceu sincrônico e punitivo – eu o temia, com esse calor extremo. Temia tanto ficar sem, quanto o ser culpa minha pelo excesso do uso. Todavia, aconteceu.

Ficar do lado de fora da casa no dia mais quente desde quando, sempre? Últimos anos? O que já vivi, certamente. Tomar uma brisa, ver a lua. Dormitar na cadeira de área, ser picada. Roger estava fazendo pão, encerrou o processo no meio.

Começou uma tempestade, muito vento, alguns pingos de chuva, ao longe um incêndio gigantesco (criminso, muito provavelmente, ou fruto de um relâmpago aliado à seca). Um rápido desespero pela Grumixama não estar em casa, ela fica apavorada nessas situações. Rezei o mantra da minha avó – oyashikiri, oyashikiri -, ela se materializou ofegante na dispensa (a gata, não minha avó). Agradeci.

Muito medo. Medo do aquecimento global, do fim dos tempos, de não termos mais tempo. Uma estranha certeza de que a luz não voltará até amanhã, quiçá nunca mais, que passaremos a noite em absoluto desconforto. Mas instalei novamente o tule na janela do quarto, que pernoitou aberta pela primeira vez em dois anos (após a mesma gata destruí-lo, em seguida a essa única noite de uso).

Sinto que precisei viver isso, um pífio rito de passagem, nada demais, mas tingido de tom calamitoso.

Hoje a luz voltou às 10 da manhã, confirmando minha primeira teoria, desbancando a segunda e me inundando com um otimismo descabido e com a necessidade de dançar com o vento, conduzindo-o de um lado a outro da varanda. Parecia estar possuída por outra força – não física, pois estirei um músculo da perna ao carregar uma cadeira e pisar em falso calçando um tamanco, e ademais sou meio desengonçada em meus passos de dança mais ousados (como esse pas-de-deux com a cadeira – ou melhor, faux pas). Tentei todavia equilibrar-me e soprar junto a essa ventania.

Hoje então ventou muito, o dia inteiro, inspirando a leitura intermitente, mas até ao final, de Escute as Feras, da Nastassja Martin – cortada por sonecas na varanda, golpes de vento na cara, alerta, pegar roupas no varal, assistir a qualquer coisa na tevê com o Rogê. Algo em mim segue eriçado, guiado por essa selvageria antes literal do que simbólica, mas incontestável, incontornável. “Vi o mundo demasiado alter do bicho; o mundo demasiado humano dos hospitais. Perdi meu lugar, procuro um entremeio. Um lugar onde me reconstituir”. De novo penso no mestrado, no Arlindo, que me disse, após presenciar um ataque de pânico que não consegui esconder, quase que exatamente isso, quase que nas mesmas palavras (como mencionado aqui, no texto “Envelhecer”).

Hoje não liguei o ar nem o vento o dia inteiro, nem o computador (só o celular. Só acompanhei o Roger no escritório. Só o acompanhei vendo tevê. Truques). A janela do quarto segue aberta, assim como a cortina, o sol atinge meu corpo e não me fustiga, como esperava. Não sei se por conta da fumaça do incêndio, que o filtra, mas creio que sim, pois ele então pôs-se vermelho. O vento me refresca e põe de cabelos em pé, chacoalhando a casa inteira.

Não consigo decifrar os acontecimentos, seus significados, sintomas. Estou em um estado de torpor alerta, como que mesmerizada. Agora escrevo.

Sempre sua,
Popinhas

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